Herança e separação de fato: a necessária alteração do artigo 1.830 do Código Civil

Herança e separação de fato: a necessária alteração do artigo 1.830 do Código Civil

STJ tem reiterado em seus julgados a qualidade de herdeiro ao cônjuge sobrevivente

O artigo 1.830 do Código Civil prescreve que somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.

A interpretação do mencionado dispositivo legal, original da edição do Código, suscita dúvidas a partir de mudanças legais e doutrinárias que ocorreram ao longo dos quase vinte anos de publicação da lei civil.

Tendo em vista (i) a facilitação do divórcio empreendida nas últimas décadas, especialmente com o desaparecimento de prazos na Emenda Constitucional nº 66/2010; (ii) o reconhecimento dos efeitos patrimoniais da consolidada separação de fato pela jurisprudência, com a extinção dos efeitos do regime de bens; (iii) a pacificação de que não há qualquer prazo de separação de fato para que seja possível a constituição de nova família pela união estável; (iv) o questionamento doutrinário da condição do cônjuge de herdeiro necessário; e (v) as dificuldades de eventual instrução probatória acerca de culpa com um dos cônjuges já falecido, há que se perguntar se ainda faz sentido conferir o status de herdeiro ao cônjuge sobrevivente quando há comprovada separação de fato antes do óbito do autor da herança. No mesmo sentido, com ainda mais gravidade, se faria sentido dar a condição de herdeiro ao ex-companheiro sobrevivente caso a união estável tenha se extinguido antes do falecimento.

É preciso dar relevância e urgência à alteração desse dispositivo porque, apesar pouco debatido na doutrina, ele tem sido utilizado como fundamento para a manutenção da condição de herdeiro pelo Superior Tribunal de Justiça. Enquanto persistir essa redação no Código Civil, haverá ampliação da participação do cônjuge e do companheiro na sucessão, mesmo quando eles já nem mantinham comunhão de vidas com o autor da herança.

Neste momento que se discute a condição de herdeiro necessário, a repercussão post mortem dos regimes de bens e a concorrência do cônjuge e do companheiro com descendentes e ascendentes, não pode passar desapercebida a gravidade da manutenção da redação do artigo 1.830 do Código Civil.

A reforçar a inadequação da norma, é realizada abaixo uma análise dos acórdãos do STJ que usaram o referido dispositivo como fundamento de decisão.

A aplicação do artigo 1.830 pelo Superior Tribunal de Justiça

A pesquisa feita na página eletrônica do Superior Tribunal de Justiça foi realizada em 08 de novembro de 2023 tendo como critério a inserção do artigo 1.830 do Código Civil no operador padrão ‘legislação’. A partir desse critério foram encontrados cinco julgados que têm indexação com o dispositivo em discussão e pertinentes à questão analisada.

No Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.409.503, julgado em 20.03.2014, a condição de herdeira foi afastada no caso de uma ex-companheira que já estava separada de fato há mais de 12 anos do de cujus. Contudo, ficou evidenciado que o afastamento da condição de herdeira não significa a impossibilidade de que sejam reconhecidos direitos patrimoniais decorrentes de meação. Ou seja, a separação de fato muito longa excluiu direitos sucessórios, mas não impede o pleito de, no inventário, serem reconhecidos os direitos de meação no patrimônio amealhado na constância da sociedade conjugal.

O julgamento do Recurso Especial nº 1.513.252, em 03.11.2015, traz informações valiosas sobre o entendimento do STJ sobre o tema. O julgado trata da pretensão de uma viúva que estava separada há mais de dois anos do falecido, mas que, contudo, pretendia figurar como herdeira sob o fundamento de que o rompimento havia ocorrido sem sua culpa. Interessa notar que a questão da culpa foi apurada e houve produção de prova nas instâncias originárias a esse respeito. A decisão proferida pelo TJSP foi no sentido de que a prova sobre a culpa era inconclusiva e que o ônus da prova da culpa da sobrevivente era dos terceiros interessados, quais sejam, os herdeiros em ação própria. Como eles não teriam se desincumbido do ônus de provar que a sobrevivente tinha culpa pela dissolução do casamento, o Tribunal reconheceu o direito de herança da ex-mulher sobrevivente, frise-se, com mais de dois anos de separação de fato. O Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao Recurso Especial, reformou a decisão de 2ª Instância, e restabeleceu a sentença, no sentido de que a prova dos autos era inconclusiva, e que a ex-mulher, cônjuge sobrevivente, não desincumbiu de seu ônus probatório, logo lhe retirando a qualidade de herdeira do “de cujus”. Portanto, observa-se que o STJ admite o direito sucessório do cônjuge separado de fato mesmo com mais de dois anos de lapso temporal, a reforma da decisão se dá, tão somente, em razão do entendimento sobre o ônus da prova:

Assim, a meu ver, cabia ao sobrevivente comprovar que a convivência se tornara impossível sem culpa sua. Isso porque, conforme se verifica da ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.829, o cônjuge separado de fato é exceção à ordem de vocação. (…) Desse modo, a sucessão do cônjuge separado de fato é exceção à regra geral, devendo o cônjuge há mais de dois anos suceder apenas se comprovar que a convivência se tornara impossível sem culpa sua.

A posição adotada no Recurso Especial nº 1.513.252 foi a de que cabe ao intérprete definir o sentido e o alcance da norma, mas não a ignorar, ainda que a doutrina seja crítica do dispositivo legal. Se o Código Civil determina a participação sucessória do cônjuge sobrevivente separado de fato há menos de dois anos, ele deve participar. E mais. Se a lei civil determina a participação na herança do cônjuge sobrevivente separado de fato há mais de dois anos, ele assim o fará, desde que se desincumba do ônus de comprovar que a dissolução não se deu por sua culpa. O acórdão é peremptório: “não há que se falar em ilegalidade ou impertinência da discussão da culpa no vigente direito sucessório”.

O Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.281.428 apresenta o posicionamento do STJ em caso de discussão da participação da viúva separada de corpos há menos de dois anos. Nesse caso, discute-se direitos sucessórios de participação na herança e direito real de habitação. A decisão foi extremamente protetiva da viúva, fazendo consignar que, como a separação era mais curta que dois anos, sequer haveria discussão sobre a culpa na insuportabilidade da vida em comum. Ela deveria participar da herança e poderia voltar ao imóvel que serviu de residência do ex-casal para desfrutar de direito de habitação, ainda que tenha sido ela a afastada do lar pela decisão concessiva da separação de corpos. De acordo com o julgado, “o fato gerador no direito sucessório é a morte de um dos cônjuges e não, como cediço no direito de família, a vida em comum”.

Já o Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.882.664 enfrentou a questão da interpretação sistemática entre o artigo 1.830 do Código Civil e a Emenda Constitucional nº 66/2010, que facilitou o divórcio no Direito brasileiro. O posicionamento do STJ, no caso, foi de que não há qualquer incompatibilidade com a nova redação do artigo 226 da CRFB e o dispositivo infralegal em discussão:

Outrossim, prudente consignar que, de acordo com a jurisprudência do STJ, a Emenda à Constituição n. 66/2010 apenas excluiu os requisitos temporais para facilitar o divórcio. O constituinte derivado reformador não revogou, expressa ou tacitamente, a legislação ordinária que cuida da separação judicial, apenas facultou às partes dissolver a sociedade conjugal direta e definitivamente através do divórcio.

Esse acórdão, julgado em 23.11.2020, traz uma definição: “o cônjuge herdeiro necessário é aquele que, quando da morte do autor da herança, mantinha o vínculo do casamento, não estava separado judicialmente ou não estava separado de fato há mais de dois anos”.

O julgamento do Agravo Interno nos Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Especial nº 1.782.663, em 08.08.2022, ou seja, bastante recente, trouxe a aplicação do artigo 1.830 à união estável. No caso, a companheira sobrevivente e o falecido tinham vivido em união entre fevereiro e julho de 2013, com pacto de eleição do regime da separação de bens. O de cujus faleceu em agosto de 2013 e seus filhos cuidaram de fazer a partilha entre eles. A companheira pleiteou seus direitos sucessórios e distribuiu ação de reconhecimento post mortem de união estável, na qual foi reconhecido o término da união estável antes do falecimento. Ainda assim, em consideração (i) à equiparação de regimes sucessórios entre cônjuge e companheiro; (ii) ao entendimento consolidado pelo STJ de que no regime da separação convencional de bens o sobrevivente participa nos bens particulares; e (iii) ao artigo 1.830 que dá o status de herdeiro ao sobrevivente ainda que a relação tenha terminado antes do falecimento, a ex-companheira sobrevivente foi considerada herdeira em igualdade com os filhos do autor da herança.

Ou seja, hoje, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça é de que, enquanto vigente o artigo 1.830 do Código Civil, não há que se afastar a viúva ou o viúvo separado de fato há menos de dois anos: “como a literalidade do texto legal não afasta a condição de herdeiro do cônjuge sobrevivente, separado de fato há menos de dois anos, não pode o intérprete fazê-lo, sob pena de surpresa indevida aos particulares, gerando insegurança às relações civis”. Aliás, mesmo o cônjuge sobrevivente separado há mais de dois anos pode pleitear sua condição de herdeiro, desde que cuide de comprovar que a dissolução aconteceu sem sua culpa.

Como se viu, o Superior Tribunal de Justiça tem reiterado em seus julgados a qualidade de herdeiro ao cônjuge sobrevivente, independente da existência da comunhão de vidas no momento da morte do outro, se existentes os requisitos previstos no art. 1.830 do Código Civil, artigo que não se adequa mais com as mudanças legais e doutrinárias dos últimos vinte anos.

Por tal razão, a alteração do artigo 1.830 é essencial nesta reforma que será feita pelos vinte anos da entrada em vigor do Código Civil.

Sugestão para uma nova redação para o artigo 1.830 do Código Civil.

Diante destas considerações, a solução é a imediata alteração legislativa, sendo que a redação mais adequada ao dispositivo é “Somente é reconhecido o direito sucessório ao cônjuge ou companheiro sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, ainda estava mantida a comunhão de vidas”.

Assim, a nova redação estará compatível com a legislação atual, com o entendimento doutrinário e, também, com o entendimento jurisprudencial das demais questões pertinentes ao Direito de Família e das Sucessões, que já reconhece a extinção dos efeitos do regime de bens quando da separação de fato.

Creditos:

GRACE COSTA – Advogada, Vice-Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões da Seção Estadual de Santa Catarina (ADFAS/SC)
LAURA BRITO – Advogada, Doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Artigo publicado no website jota.info – Ver artigo

Por

Grace Costa

Direito de família e sucessões


O escritório especializado em Direito de Família e Sucessões oferece atendimento personalizado e atuação que prima pela qualidade técnica e por valores humanos como seriedade, discrição e sensibilidade para resolver conflitos familiares e sucessórios.

Newsletter

Receba notícias e
informações sobre
Grace Costa

Preencha seus dados

    Ao assinar você concorda automaticamente com nossa política de privacidade - clique aqui e saiba mais